Arlindo
Nascimento Rocha[1]
"A garantia da conformidade com as normas nacionais e internacionais deverá fazer parte das atividades normais e do dia a dia de uma empresa"
Selma Carloto
A
ideia do Compliance como conhecemos atualmente, não surgiu por mágica
nem nasceu do asfalto. Etimologicamente, a palavra Compliance (do inglês
‘to comply’) significa: cumprir, concordar, obedecer, estar de acordo,
consentir, sujeitar-se, ou seja, agir de acordo com uma norma, comando ou
pedido.
Indo
além da etimologia, é importante ressaltar que quando observado nas
instituições públicas ou privadas, os gestores devem saber que, estar em Compliance,
é estar em conformidade com as leis, normas e regulamentos internos e externos.
Logo, é fundamental que as empresas estejam absolutamente conforme o arcabouço
legal nas três esferas de governança: federal, estadual e municipal, pois, o Compliance
representa o primeiro passo para o fortalecimento dos sistemas de integridade em
qualquer instituição.
A cultura do Compliance, ou seja, a ideia de conformidade é uma construção que vem sendo aprimorada desde a segunda metade do séc. XIX até nossos dias. Especialistas na área concordam que sua gênese encontra-se nos EUA. Estudos recentes realizados por Éderson Porto (principal referência para a elaboração deste artigo), que publicou em 2020, a obra Compliance & Governança Corporativa, corrobora essa tese, e sugere que ela surgiu em 1887, com a edição da Interstate Commerce Act (Lei do Comércio Interestadual).
Essa Lei criou a Agência Regulatória Federal Interstate Commerce Commission ‘ICC’ (Comissão de Comércio Interestadual), cujo objetivo era supervisionar e impor diretrizes comerciais às transportadoras, combatendo assim, o monopólio ferroviário. A ICC foi a primeira comissão reguladora dos EUA, estabelecida como resultado da indignação pública contra práticas ilícitas e abusos ferroviários.
Essa ideia embrionária ganhou força no início do séc. XX, com a Pure Food and Drugs Act (Lei Sobre Alimentos e Medicamentos Puros), datada de 1906, cujo objetivo perpassava pela proibição do tráfico de alimentos e medicamentos adulterados. Essa lei, foi a primeira de uma série de outras leis de proteção ao consumidor que foram publicadas pelo Congresso estadunidense. Sete anos depois, em 1913, foi criado a Federal Reserve (Reserva Federal), primeiro órgão com poderes para estabelecer normas e regulamentações no setor bancário.
Com o Crash
da Bolsa de Nova York, iniciada na chamada “Quinta-Feira Negra” (24 de outubro
de 1929), houve o colapso do mercado financeiro, causando pânico no setor
bancário. Esse colapso inviabilizou as medidas econômicas liberais, que
apontavam o capitalismo como instrumento ideal para alcançar o equilíbrio
econômico e social, sem a intervenção do Estado, tendo atingido, não só o
mercado norte-americano, mas também, o europeu, o africano, o asiático e o
latino-americano, convertendo-se assim, em um flagelo generalizado.
Diante
da catástrofe econômica, era preciso encontrar uma saída que pudesse ajudar os
mercados a recuperar sua pujança financeira. Por isso, quatro anos depois, em 1933, com
o presidente Franklin Roosevelt, foi implementado o New Deal (Novo
Acordo), a partir das ideias do economista John Keynes, que apontava a
necessidade da intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar de
todos. O Novo Acordo visava a recuperação econômica do setor bancário. Com ele estabeleceu-se
três normas que representavam o esforço para impor regulamentação ao setor,
nomeadamente: Emergncy Banking Act (Lei Bancária de Emergência); Gold
Reserv Act (Lei da Reserva de Ouro); e, finalmente, Banking Act of
1935 (Lei Bancária de 1935).
Logo
na sequência, em 1934, foi editada a Securities Exchange Act (Lei
da Bolsa de Valores), uma lei que passou a reger a negociação de
valores mobiliários (ações , obrigações e debêntures) e a incorporar
uma série de regras como: elaboração e publicização de relatórios
corporativos; autorizações para atuar em nome de acionistas; padrões
de integridade e ética a serem seguidos; registro de transações
exigidos pela legislação.
Seis anos mais
tarde, em 1940, foi editada a Investiment Company Act (Lei da Empresa de
Investimento), destinada a regular o investimento através do estabelecimento de
normas de conduta. Quatro anos depois, em 1994, foi criado o Banco
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento ‘BIRD', conhecido atualmente
como ‘Banco Mundial’ que destacou-se por sua originalidade entre as
organizações internacionais criadas depois da Segunda Guerra Mundial, por efetuar
empréstimos a países em desenvolvimento.
Na década
de 1950, com a Prudential Securities Act (Lei de Títulos
Prudenciais) passou a ser obrigatório a contratação de advogados para monitorar
o cumprimento dos padrões de conduta pelas empresas. Na década seguinte
(1960), a Lei de Títulos Prudenciais continuava repercutindo seus
efeitos, quando passou-se a exigir a contratação de Compliance officers.
No início da década de 1970, que antecede a criação da primeira ‘Lei
anticorrupção’, houve a criação da Corporate Finance (Finanças
Corporativas), visando lidar com situações relacionadas a fontes de
financiamento, estruturação de capital e decisões de investimento, cuja
preocupação era maximizar o valor do acionista.
Em
1977, houve uma mudança de paradigma, ou seja, os EUA entraram efetivamente na ‘Era
do Compliance’, com a criação da Foreign Corrupt Practices Act ‘FCPA’
(Lei Sobre Práticas de Corrupção no Exterior). Com essa Lei, o Compliance
ganha abrangência e efetividade, pois, passou a ser aplicável a todos os
americanos e estrangeiros. Com a promulgação de novas normas em 1998, as
disposições anticorrupção passaram a ser aplicadas a empresas estrangeiras.
Como
ferramenta de prevenção da corrupção, a FCPA tem tido um papel importante na
orientação das empresas no processo de combate à corrupção, pois, desde sua
criação, tem servido de inspiração para a criação de legislações anticorrupção
em diversos países, nomeadamente, no Brasil que, apesar do investimento nesse
quesito, em 2020 ocupava a 106ª posição no Índice de Percepção da
Corrupção ‘IPC’, representando o pior resultado desde 2012, segundo informações
da Transparência Internacional.
A década
de 1980, marca a fase da expansão do Compliance para além das
atividades financeiras no mercado americano. Na década seguinte (1990),
vários eventos concorrem para a consolidação do Compliance, coma : Financial
Action Task Forc (Força-Tarefa de Ação Financeira); Caribbean
Finantial Action Task ForceI (Força-Tarfa de Ação Financeira do
Caribe); criação da Comissão Interamericana para o Controle de Abuso de Drogas ‘CICAD’; e,
finalmente, a fundação da Organização dos Estados Americanos ‘OEA’.
No início
do séc. XX, com a falência da Enron Corporation (companhia de energia
americana), devido a falha dos Controles Internos, surgiu novas normas sobre
o Compliance. Oito anos depois, em 2008, devido à crise
imobiliária, o então Presidente Barack Obama editou a Lei Dodd-Frank Wall
Street Reform and Consumer (Lei da Reforma e Proteção ao Consumidor
Dodd-Frank Wall Street), que estabeleceu novas agências governamentais
encarregadas de supervisionar os vários componentes da lei e, por extensão,
vários aspectos do sistema financeiro norte-americano.
Já na
segunda década deste século (2014), foi editada a Lei Foreign Account
Tax Compliance Act (Lei de Conformidade de Impostos de Contas
Estrangeiras), que busca aplicar a transparência no que diz respeito às normas
contábeis e tributárias das empresas, passando a adotar condutas globais
através da edição da International
Organization for Standardization ‘ISO:
19.600’ (Organização Internacional para Padronização), que apresenta
o roteiro para o estabelecimento, implementação, avaliação, manutenção e
aprimoramento de sistemas de Integridade e Compliance nas empresas.
Depois
de 2016, houve a edição da ‘ISSO 37.001’, que representa o primeiro padrão
internacional de sistemas de gerenciamento antissuborno e fornece uma linha de
base comum, que as organizações devem usar para gerenciar seus riscos de
suborno e implementar padrões de Compliance. A ‘ISO 37.001’ foi
absorvida pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ‘ABNT’ (NBR37001), que propôs
os mesmos objetivos relativamente ao suborno, ou seja, ‘evitar a prática de
suborno pelos agentes da administração pública’; e, ‘evitar a prática de
suborno oficial e o suborno de particulares’.
As duas
normas têm escopos diferentes. A primeira (ISO 19.600), não é certificável, e
ocupa-se de todos os riscos de uma instituição, enquanto que a segunda (ISO
37.001), é certificável e passível de creditação, pois, seu foco principal são
os riscos de suborno.
De
1887 até 2016 foi uma longa jornada de quase dois séculos, uma verdadeira odisseia.
Essa jornada cheia de fatos e acontecimentos, consolidou progressivamente a confiança
e o investimento em sistemas de Compliance que passaram a garantir mais
transparência e confiabilidade nos negócios. Essa preocupação com um ambiente
de negócios mais ético chegou ao Brasil, exatamente no momento em que as
empresas norte-americanas começaram a exigir das filiais brasileiras a adopção
de normas anticorrupção e antissuborno.
Todas
as normas elencadas influenciaram positivamente o ordenamento jurídico
brasileiro. A despeito da má colocação no ranking do IPC, nas últimas
décadas, o Brasil
vem aprimorando suas leis até chegar onde estamos. Na segunda década deste
século, mais precisamente, entre 2011 e 2013, foram editadas duas leis muito
importantes para o combate à corrupção.
A
primeira Lei foi a no 12.529/2011 que ‘dispõe sobre a prevenção e
repressão às infrações contra a ordem econômica’; a segunda que,
efetivamente, inaugurou a ‘Era do Compliance’ no Brasil’ é a no
12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que dispõe objetivamente sobre a ‘responsabilização
administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a
administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências’. Os
principais objetivos dessa Lei são: ‘suprir a lacuna existente no
ordenamento jurídico brasileiro quanto à responsabilização de pessoas jurídicas
pela prática de atos ilícitos contra administração pública’; e, ‘atender
aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção’.
Sendo assim, ela prevê dois tipos de sansões às pessoas jurídicas que atuarem
na contramão da norma: uma de natureza ‘pecuniária’ e outra de natureza ‘condenatória’.
A Lei
no 12.846/2013, que foi regulamentada pelo Decreto no
8.420/2015, em seu Art. 41, conceitua Programa de Integridade
como um “conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade,
auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de
códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar
e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a
administração pública, nacional ou estrangeira”.
A Operação
Lava Jato que teve início em 2014, influenciou decisivamente o surgimento do
‘Estatuo Jurídico da Empresa Pública’, através da Lei no 3.
303/2016, regulamentado pelo Decreto no 8.945/2016. Nesse sentido, a
Controladoria Geral da União ‘CGU’, como órgão de controle interno do
Governo Federal, vem atuando no sentido de garantir o amadurecimento do
sistema de Compliance no Brasil.
Por
isso, a partir da Lei Anticorrupção, editou uma série de normas e
regulamentações visando aprimorar os dispositivos de prevenção e combate à
corrupção, nomeadamente, a Portaria no 909/2015, que ‘dispõe
sobre a avaliação de Programas de Integridade de pessoas jurídicas’; a no
910/2015, que ‘define procedimentos para apuração de responsabilidade
administrativa para celebração de
contratos de leniência’; a no 2279/2015, que ‘dispõe sobre
avaliação de Programas de Integridade de microempresas e de empresas de pequeno
porte’, e, finalmente, a no 1.382/2018, que ‘dispõe sobre
Programas de Integridade para Administração Pública’.
A CGU,
em pareceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
‘ANVISA’ e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica ‘CADE’, editaram
conjuntamente duas Portarias. A primeira foi com a ‘ANVISA’ (no
2/2018), e a segunda com a ‘CADE’ (no 4/2018). Ambas estabelecem ‘diretrizes
de troca de informações para apuração de casos envolvendo suborno transnacional’.
Ainda em 2018, a CGU editou outra Portaria (no 1.089), que
regulamenta o Decreto no 9.203/2017, estabelecendo assim, os ‘procedimentos
para a estruturação e execução de Programas de Integridade em 350 órgãos
federais’.
Para
concluir, pode-se afirmar que, o movimento que atualmente é conhecido como
cultura do Compliance é o fruto do esforço continuo para o aprimoramento
do arcabouço legal internacional e nacional, por forma a responder aos anseios
da sociedade comprometida com a transparência, ética, honestidade e
probidade.
Arlindo Rocha – 06/08/2021
Referência:
PORTO,
Éderson Garin. Compliance & Governança Corporativa: uma abordagem
prática e objetiva. - Porto Alegre: Lawboratory, 2020.
[1] Atua como Consultor do Núcleo
de Integridade da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das
obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro:
Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como
paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019;
Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020 e de
vários artigos publicados em revistas acadêmicas.

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