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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Mitos e verdades sobre gestão de riscos: conhecereis os mitos e a verdade vos libertará

 

“Até mesmo uma decisão correta é errada se tomada muito tarde” 

[Lee Iacocca].

 

                                               Por: Arlindo Nascimento Rocha[1]

A humanidade, segundo o sociólogo alemão Erich Fromm, começou com a assunção de um risco (desobediência) que representa, ao mesmo tempo, o princípio da liberdade e o desenvolvimento do raciocínio, ou seja, foi o primeiro ato de transgressão que, literalmente, abriu os olhos dos nossos pais celestiais para o bem e para o mal. Com isso, passaram a seguir suas próprias inclinações e a conviver com todos os perigos que, a partir da separação ontológica tiveram que superar diariamente.  

A evolução do homem, desde então, esteve sempre atrelada ao conhecimento dos mecanismos da natureza e a previsão dos perigos. Seu primeiro lar era um lugar seguro, tranquilo e tudo existia em perfeita harmonia. Com a perda do seu referencial ontológico, seu único objetivo passou a ser a garantia da própria sobrevivência. Desta forma, precisou reinventar-se em um mundo absolutamente caótico, enfrentando situações cada vez mais complexas que o obrigou a aprimorar suas habilidades físicas e mentais, sofisticando-as continuamente.

Com a complexificação da sociedade, percebeu que viver em ‘comunidade’ implicava estabelecer laços cada vez mais sólidos que permitiam, não só, obter mais segurança, mas também, partilhar informações sobre os animais que caçavam, das plantas que coletavam, dos riscos e infortúnios ligados à vida cotidiana. A evolução favoreceu àqueles que foram capazes de superar os riscos e estabelecer laços fortes e duradouros que subsidiaram a continuidade da espécie humana, e, pelo acúmulo de conhecimento foram capazes de prever certos riscos, executar estratégias e propor soluções eficazes.

Por isso, os homens ascenderam tão rapidamente ao topo que os ecossistemas não tiveram tempo de se ajustar às demandas cada vez maiores. Estas aumentaram incontrolavelmente que novas transgressões não demoraram para acontecer. O fruto disso foi o esgotamento de alguns recursos que levaram a dispersão inicial dos homens. Logo, é verossímil afirmar que a transgressão não é algo novo, pois existe desde os primórdios. O primeiro ato transgressivo é antigo e do conhecimento de grande parte dos homens, já os subsequentes, apenas seu conhecimento é novo para alguns homens, mas, todos, já perceberam o quão é importante minimizá-los.

Se os primeiros homens, ainda que, intuitivamente souberam até certo ponto, lidar e evitar certos riscos para a manutenção da sua sobrevivência, atualmente continuamos seguindo a mesma estratégia. E mais, continuamos lidando com velhos e novos riscos. Os velhos provêm de desenvolvimentos dramaticamente negativos que deveriam ser previstos, e até evitados, mas, tal não aconteceu e os novos, do nosso egoísmo e irresponsabilidade ambiental, social, cultural e econômica.   

A única diferença é que, atualmente, podemos afirmar com absoluta segurança, que é possível fazer uma gestão de riscos de forma cada vez mais eficaz, permitindo prever, controlar e mitigar determinados riscos que, infelizmente ou felizmente estamos submetidos, pois, até o simples ato de respirar, nos últimos anos tornou-se um dos maiores riscos. Logo, afirmar que não existirá futuro destituído de riscos é trivial e não constitui nenhuma novidade. Em termos políticos e éticos um dos maiores riscos da sociedade contemporânea, certamente, é o de não querer correr riscos, aliás, não correr riscos é uma estratégia que apenas conduz ao fracasso, como diria Zuckerberg.

Quando se fala de administração pública, a gestão de riscos, segundo Rodrigo Fontenelle é o elemento chave, a pedra angular das organizações públicas, pois, permite lidar de modo eficaz com as incertezas. No entanto, sua efetiva implementação não é fácil, uma vez que, ao longo dos tempos construiu-se vários mitos em torno desses sistemas que precisam ser desconstruídos. Alguns são parcialmente verdadeiros, mas não representam a realidade das atuais instituições públicas.

De acerta forma é até compreensível, uma vez que, em sua gênese, os mitos ajudaram os primeiros homens a dar sentido às incertezas que os rodeavam. Então, como categoria fundante da humanidade é inquestionável sua presença na vida dos homens, pois, sua função primordial era revelar modelos exemplares de todas as atividades humanas. Mas, na administração pública atual, a gestão de riscos não pode guiar-se pelas inconsistências dos mitos, muitas vezes tidos como supostas verdades.

Existem dezenas deles, mas, nosso objetivo não é fazer uma lista interminável. Queremos sim, provocar no leitor a tomada de consciência que, muitas vezes nossa ‘ignorância’ sobre determinadas matérias nos faz aceitar as soluções mais fáceis e, aparentemente, menos complicadas. Diante disso, os gestores precisam escolher, objetivamente, que estratégia seguir, pois, quando não se tem uma rigorosamente definida, qualquer solução serve.   

Não que a gestão de riscos seja uma tarefa, absolutamente fácil, ou a bala de prata para todos os problemas da administração pública, mas é importante que haja minimamente a compreensão dos objetivos que inspiram sua implementação, pois, é um requisito cada vez mais necessário. Segundo especialistas, ela permite que se contabilize o potencial impacto de todos os tipos de riscos em todos os processos, atividades, produtos e serviços prestados.

Para nos ajudar a compreender e desconstruir os mitos mais comuns na implementação de sistemas de gestão de riscos na administração pública, Fontenelle sumariza na obra Implementando a gestão de riscos no setor público, uma lista de cinco mitos que passaremos a explicitar:

O primeiro mito, está relacionado com a equivocada noção de que implementar um sistema de gestão de riscos, implica no aumento de trabalho. Mas, sua implementação, segundo Fontenelle, não pode ser vista como mais uma tarefa. Na verdade, está atrelada a uma mudança de cultura organizacional, mas, isso não acontece como se fosse um passe e mágica;

Da mesma forma, o segundo está relacionado com o suposto aumento dos custos da instituição. Na verdade, é o contrário, pois, um sistema eficaz de gestão de riscos é uma aliada na redução de custos, através da otimização dos processos e priorização das demandas. Sendo assim, é preciso definir claramente a metodologia, as responsabilidades e responsabilizações para gerenciar os riscos tendo em conta os objetivos e a política da instituição;

O terceiro mito não foge à regra, pois, a visão distorcida de que a gestão de riscos pode engessar os processos institucionais através do aumento de controles, é segundo Fontenelle, uma falácia, pois, um bom gerenciamento de riscos fará com que os gestores conheçam seus processos e, consequentemente, o nível de risco envolvido nas atividades da instituição; 

O quarto mito, é o fato comum de pensar que apenas através de consultorias externas é possível implementar um bom sistema de gestão de riscos no setor público o que pode, efetivamente, aumentar os custos. Diante disso, Fontenelle assegura que, mais importante do que contratar consultorias é investir na capacitação dos servidores. Estes, poderão atuar como multiplicadores gerando bons resultados a partir de um custo baixo;

Finalmente, o quinto mito prende-se na visão enganosa que, para se implementar a gestão de riscos, o gestor precisa necessariamente de um sistema informatizado. Em verdade, muitas instituições, que já possuem sistemas de gestão de riscos avançados, começaram utilizando simples planilhas. Diante disso, Fontenelle assegura que, a falta de recursos para implementar um sistema informatizado não pode ser usado como desculpa para a não implementação de gestão de riscos.           

Os mitos ligados aos sistemas de gestão de riscos são tão numerosos que não se esgotam delimitando-os, apenas aos cinco identificados na obra de Fontenelle. Desta forma, é possível ainda, baseado nos estudos de David Hillson, líder internacional em gestão de risco, enumerar outros tão importantes quanto os citados, nomeadamente:

  • Todos os riscos são ruins;
  • A gestão de riscos é um desperdício de tempo;
  • O que não conhecemos não nos prejudica;
  • O gestor é o único responsável pelo gerenciamento de riscos;
  • Todos os riscos podem e devem ser evitados;
  • O nosso negócio não é arriscado;
  • Gestão de riscos requer números;
  • Os riscos são cobertos por processos existentes;
  • Contingência é para pessoas fracas;
  •  A gestão de riscos não funciona. 

Contra os mitos, apenas a verdade dos fatos é o caminho. Caminho esse que só é possível percorrer através do conhecimento da verdade, literalmente expresso no versículo de João, segundo o qual “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. No caso concreto dos gestores públicos, conhecer os mitos é importante, porém, conhecer a verdade sobre eles é fundamental para que se possa desconstruí-los em função da boa gestão. Inevitavelmente, chegar-se-á à conclusão de que, o gestor que conhece os riscos a que está exposto, estrará em condições de aceitá-los, transferi-los ou mitiga-los sumariamente.

Então, seguindo o citado versículo, Hillson aponta um conjunto de verdades associados aos mitos anteriormente mencionados que, certamente, ajudarão os gestores públicos a se libertarem de algumas certezas erroneamente cristalizadas e que em nada ajudam a administração pública. Em síntese, assegura que:

  • Os riscos incluem ameaças e oportunidades e ambos precisam ser gerenciados de forma proativa;
  • Se lidarmos com o risco de forma eficaz não haverá muitos problemas;
  • Os riscos podem prejudicar nosso negócio e a nós também;
  • Cada membro da equipe deve ser um gestor de risco administrando os que afetam sua área;
  • Nem todas as ameaças podem ser evitadas, pois, as vezes evitá-las pode trazer custos elevados;
  • O risco é inerente em todos os negócios e projetos;
  • Muitos riscos não podem ser quantificados, logo, a abordagem qualitativa é necessária;
  • A gestão de riscos deve identificar novos riscos, avaliar sua importância e desenvolver respostas específicas;
  • Incluir um orçamento para riscos conhecidos e contingentes é sinal de sabedoria e não de fraqueza;
  •  A gestão de riscos quando feita corretamente, sempre funciona.  

 

Portanto, esforços contínuos em diversos níveis são necessários para permitir que os gestores de instituições públicas tenham como conhecimento o processo de: avaliação, gerenciamento e busca de feedback sobre os riscos mitigados ou não, uma vez que, ela é parte integrante de todas as atividades de governança e deve ser institucionalizada através de metodologias híbridas de fácil compreensão, implementação, monitoramento e avaliação.

A verdade espelhada em tudo o que acabamos de abordar é que, enfrentar e desconstruir os mitos sobre a gestão de riscos e implementar soluções exequíveis permitirá aos gestores públicos garantir que, sua gestão seja baseada na realidade, garantindo-lhes maiores chances de sucesso.

Enfim, os gestores devem perceber que até mesmo uma decisão correta é errada se tomada muito tarde, como citamos na epígrafe do artigo. Portanto, implementar a gestão de riscos na administração pública é uma decisão correta, mas, precisar ser tomada no momento certo.

 

Niterói, 17/11/2021.



[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade e compliance da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020; Blaise Pascal: o caniço pensante. - 1ª ed. - Rio de Janeiro, 2021 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Gestão de riscos: a pedra angular da arquitetura das instituições públicas



O grande risco é não assumir nenhum risco. Em um mundo que muda, de verdade, rapidamente, a única estratégia com garantia de fracasso é não assumir riscos”

(Mark Zuckerberg).

 

Por: Arlindo Nascimento Rocha[1]

Falar em gestão de riscos, principalmente, para quem trabalha na administração pública não é novidade nem modismo, aliás, nem poderia ser, pois, o filósofo espanhol Sêneca já dizia que viver é correr riscos, amar é correr riscos, confiar é correr riscos... Alguns necessários, outros nem tanto. Mas, o risco maior é não correr nenhum risco. Logo, aceitá-los deve ser uma atitude consciente, pois, quando bem geridos, tornam-se nossos aliados e, sumamente importantes para o nosso amadurecimento, visto que, ajudam a pavimentar o caminho para o sucesso pessoal e profissional.

Em geral, risco é basicamente considerado um aspecto negativo de uma possibilidade, ou seja, a chance de algo não dar certo devido a infinidade de contingências que enfrentamos no dia-a-dia ou, simplesmente, o desconhecimento do futuro. Portanto, o risco é inerente a toda e qualquer atividade humana, por isso, é impossível de ser eliminado. Essa noção acompanha a evolução da humanidade e foi frequentemente abordada pelas filosofias clássicas como é o caso da platônica, da aristotélica e das filosofias existencialistas contemporâneas.

Para Platão, o risco era belo e inerente à aceitação de certas hipóteses ou crenças, Aristóteles considerava-o como sendo a aproximação de algo que era terrível, mas, para os existencialistas (filósofos que exploram o problema da existência centrada na experiência humana), o risco é considerado como inerente às escolhas que o homem faz e a toda decisão da existência.  

Mesmo não esgotando as análises filosóficas do termo, é possível constatar que seu alcance extravasa toda e qualquer particularidade para tornar-se uma questão perene, universal e atemporal. Situações de risco iminente nos acompanha desde sempre e para sempre, em qualquer lugar e época. Eliminá-los seria condenar a humanidade a uma quietude insuportável, ou seja, à morte por inatividade, o que é literalmente um contra-senso, pois, certamente, nosso risco maior, poria fim de forma antecipada, nossa curta existência.

Aliás, o professor austríaco Peter Drucker, acreditava que as pessoas que não correm riscos, geralmente, cometem cerca de dois erros por ano. Pessoas que assumem riscos, geralmente, cometem cerca de dois grandes erros por ano. A diferença reside na coragem de assumi-los. Logo, quem os assume, ao contrário dos outros, geralmente, consegue bons resultados. Contudo, a atitude do decisor diante do risco é uma prerrogativa individual.

Só não assume riscos quem não tem comprometimento com os objetivos mais elementares da vida ou com o sucesso pessoal e profissional. Nesse aspeto, o empresário norte-americano, Mark Zuckerberg acertou em cheio e, certamente, havemos de concordar com ele. Para Zuckerberg, o grande risco é não assumir nenhum risco. Pois, em um mundo que muda, de verdade, rapidamente, a única estratégia com garantia de fracasso é não assumir riscos.

Então, enfrentemo-los de peito aberto, pois, o fracasso, está em fugir deles e não na capacidade de enfrentá-los. É imprescindível assumir que o risco é, naturalmente, uma condição existencial para o desenvolvimento e aprimoramento humano, pois, somos fracos e mortais expostos a todos os tipos de riscos e a todos os tipos de medos como afirmou o filósofo francês André Comte-Sponville. Logo, não há vida sem riscos.

A evolução da sociedade, a complexificação das relações humanas, a exploração exacerbada dos recursos naturais, a eliminação das fronteiras naturais e simbólicas, as Fake News (tão comuns atualmente), a criação de novos valores, ideologias e crenças científicas, políticas, filosóficas e religiosas produziram novos riscos jamais pensados. Estes, de certa forma, não se encaixam nos modelos conceituais clássicos, pois, com o surgimento de novos riscos, os velhos desaparecem. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês reconheceu isso, ao afirmar que, os riscos de hoje são de outra ordem, não podemos senti-los ou tocá-los, porém, estarmos todos expostos em algum grau, às suas consequências.

Por isso, o surgimento de um novo paradigma no que tange a gestão de riscos faz-se necessário exatamente numa época em que os riscos multiplicam-se e renovam-se com facilidade e a uma velocidade incontrolável. Isso acontece devido ao aumento da ‘liquidez’ nas relações humanas, a volatilidade cultural, ideológica e política. Esta volatilidade reverbera tanto na esfera individual, assim como na coletiva. E, ainda mais na gestão das instituições públicas, manifestamente observada em vários escândalos que solaparam o sustentáculo ético das mesmas nas últimas décadas.  

Como tudo na vida, a gestão de riscos passa por um processo acumulativo e evolutivo ao longo dos anos. Na administração pública os gestores estão cada vez mais conscientes que, no atual contexto de aceleração das transformações, a gestão de riscos surge como a próxima fronteira para uma atuação ética, transparente, responsável, íntegra e alinhada às estratégias de gestão e governança nas instituições públicas.

Desta forma, essa prática tem sido cada vez mais uma realidade no dia-a-dia das instituições, pois, é vista como a arquitetura necessária para prevenir e gerir eficazmente as demandas que emergem do processo de complexificação dos riscos. No entanto, ela não se configura como a solução mágica que garantirá a resolução de todos os problemas, mas, é certo que, as instituições iniciaram uma longa e duradora caminhada para organizar suas práticas e prever suas fragilidades em função de uma clara mudança de paradigma na gestão e governança.

A base conceitual do novo paradigma supracitado está pautada, basicamente, em frameworks (estratégias que visam solucionar problemas específicos) internacionais e em um conjunto de normativos nacionais. Estes, aumentaram significativamente a maturidade das iniciativas no setor privado. Na gestão pública, algumas experiências ainda são tímidas, porém, com algum grau de consistência. Logo, é pacífico entre especialistas no assunto que, a gestão de riscos é um caminho sem volta, uma vez que, com sua implementação houve a redução progressiva de perdas, e o impacto sobre a geração de valores, é inequívoco.

No Brasil, existe um esforço claramente definido para que a política de gestão de riscos seja uma realidade. Apesar do início tímido, como referimos, em algumas instituições já está em fase avançada de implementação. Mas, a despeito de todo o esforço, segundo o advogado Valdir Simão, ainda continua sendo um paradigma a ser alcançado, pois, o modelo burocrático de controle com foco nas normas e nos procedimentos e não nos resultados continua sendo praticado nas instituições, de todo o país.  

A dificuldade em implementar, efetivamente, uma política de gestão de riscos no Brasil, segundo Simão, teve como obstáculos, basicamente, a escassa literatura sobre o tema e a inexistência de uma doutrina específica, que permitisse, segundo ele, guiar os passos dos gestores e a insegurança em investir em algo não consolidado. Logo, falar sobre gestão de riscos, passa necessariamente pela desmistificação de vários mitos sobre o tema, dado que, a mudança cultural não acontece em um passe de mágica.    

Falando da literatura especializada no assunto, atualmente já existe um vasto leque de material produzido, mas, o livro do atual Controlador-Geral do Estado de Minas Gerais, Rodrigo Fontenelle Miranda, intitulado Implementando a gestão de riscos no setor público (2ª ed.), veio, segundo o autor do prefácio, preencher mais uma lacuna, pois, explora didaticamente as principais estruturas da gestão de risco e oferece aos gestores um guia prático para a sua efetiva implementação e, consequentemente, afasta alguns mitos sobre sua ineficácia, devidamente abordado pelo autor da obra para desvendar as inconsistências de, pelo menos, cinco mitos ligados ao tema.

Na obra, Fontenelle conceitua a gestão de risco como sendo um elemento-chave de governança, a pedra angular da arquitetura de uma organização que permite, em primeiro lugar, saber quanto risco aceitar na busca de melhor valor para os cidadãos e partes interessadas, e, em segundo lugar, melhorar as informações para o direcionamento estratégico. Naturalmente, esse processo, segundo o autor, é dinâmico, interativo e personalizado, pois, envolve a aplicação sistemática de políticas, procedimentos e práticas de comunicação e consulta, avaliação, monitoramento, análise crítica e registro de relatos de riscos, como está explícito nas Nomas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (2018).

Não há dúvidas que, para este autor, gestão de risco é um instrumento de tomada de decisão da alta administração visando melhorar o desempenho da instituição, por isso, seus métodos e técnicas devem ser incluídas na definição de estratégias, planejamento e processos de negócios, salvaguardando a perenidade e a sustentabilidade das instituições públicas. Portanto, é considerado uma boa prática de governança, pois, inclui aspectos relacionados a accountability, transparência, monitoramento, dentre outros.

Naturalmente, para garantir que haja um bom gerenciamento de riscos, precisa-se apenas de uma coisa: definir os objetivos institucionais, ou seja o fim que se quer atingir ou o propósito a alcançar de acordo com a atividade fim de cada instituição. Essa definição permite lidar de modo eficaz com as (in)certezas dos riscos e oportunidades. Logo, não havendo objetivos institucionais, não se pode falar em eventos internos ou externos que podem atrapalhar ou ajudar a atingi-los.  

Mas, a gestão de riscos tem um compromisso com o futuro das instituições ao buscar antever a ocorrência de eventos e controlar as consequências e os impactos sobre elas. Desta forma, é possível e desejável iniciar e dar continuidade ao processo de gerenciamento de riscos, identificando os que representam ameaças para que os objetivos não sejam, efetivamente, atingidos. Então, é dever dos gestores, gerenciar os riscos da sua instituição, mantendo em primeiro plano o interesse público.

Quando claramente definidos, os objetivos desdobram-se em metas e indicadores, que representam o rumo que as instituições devem seguir. Sendo assim, é um imperativo que todas devam ter clareza de seus objetivos, metas e indicadores mais importantes, pois, permite compreender de que forma as ações de gestão de riscos podem contribuir para a mitigação dos problemas com maior potencial de gravidade.

Conhecer os objetivos de uma instituição é tão importante quanto o mapeamento e a identificação dos riscos decorrentes dos ambientes interno e externo que tornam incerto determinados objetivos. Estes podem ser de natureza operacional, legal, tecnológica, ambiental, patrimonial, fraude e corrupção. Infelizmente, sempre existirão riscos desconhecidos, por isso, é um processo que deve ser monitorado e aprimorado continuamente.

Um marco importante no Brasil foi a publicação da Portaria no 150/2016 que institui o Programa de Integridade e o Comitê de Gestão Estratégica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. A partir daí foi construída, segundo Simão, uma metodologia para gestão de riscos. Então, a preocupação com os riscos passou a ser uma realidade objetiva, pois, se uma instituição não conhece os riscos que está exposta, não os identifica, nem os mapeia, pode-se assegurar com certo grau de certeza que, o sucesso de qualquer programa de integridade estará comprometida, como assevera Ederson Porto, em Compliance & governança corporativa.      

Por isso, passou a ser um componente obrigatório dos Programas de Integridade das instituições públicas nos estados e municípios do país. Os programas têm como objetivo promover adoção de medidas e ações destinadas à prevenção, à detecção e à remediação de fraudes e atos de corrupção. Logo, a gestão de riscos passou a ser vista como uma ferramenta que permite mapear os processos organizacionais das instituições, de forma a identificar as fragilidades que possibilitam a ocorrência de desvios, fraudes e atos de corrupção.

Nesse sentido, especialistas defendem que a gestão de riscos deve ser um processo permanentemente, monitorado pela alta administração, pois, contempla ações como: identificar, avaliar e gerenciar potenciais eventos que possam afetar a instituição, visando fornecer certa segurança na realização dos objetivos.

Para concluir, é importante ressaltar que, gestão de riscos não deve ser vista como mais uma burocracia, um gasto desnecessário ou o aumento de trabalho, mas como uma ferramenta útil que requer dos gestores uma conduta proativa na identificação das diversas situações em que a instituição está exposta, objetivando reduzir as incertezas, através da criação de uma cultura fundamentada na prevenção, avaliação e correção dos rumos da instituição.

Por isso, reforçamos a tese de Fontenelle, segundo a qual, gestão de risco é a pedra angular da arquitetura de uma instituição para o sucesso estratégico e operacional e precisa se encaixar bem como um processo de governança das instituições públicas. Mas, para melhor entender tais desdobramentos, sigamos todos, o conselho de Valdir Simão, que sugere a leitura do livro de Fontenelle como obrigatória, pelo menos para os gestores públicos que queiram implementar e/ou aprimorar a gestão de riscos nas instituições que dirigem, visando obter os melhores resultados possíveis.

Niterói, aos 20/10/2021.



[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020; Blaise Pascal: o caniço pensante. - 1ª ed. - Rio de Janeiro, 2021 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Accountability: garantia de integridade e compliance na gestão de recursos públicos e privados


 

A garantia da integridade se dá através de estratégias de promoção dos sistemas políticos e administrativos nos órgãos públicos e na sociedade e através de ações de accountability”.

Arlindo Nascimento Rocha[1]

Nos atuais modelos de gestão, é comum que os cidadãos elejam ou deleguem poderes a terceiros para gerir seus recursos visando alcançar melhores resultados. Por seu lado, os gestores ou os responsáveis pela gestão dos recursos públicos ou privados devem prestar contas aos cidadãos, demonstrando integridade e controle, sempre em conformidade com a ética e a responsabilidade, ou seja, seguindo as diretrizes e as normas aplicáveis.

Sendo assim, o controle exercido em torno da gestão dos recursos torna-se um imperativo, pois, é uma atividade que envolve confiança, e, sem ela, não é possível obter bons resultados. Nesse sentido, a confiança é o elo que gera segurança na medida em que, é a garantia de que o gestor não agirá de forma oportunista, ou seja, em proveito próprio. Por isso, os cidadãos devem estar confiantes de que eventuais condutas desviantes na gestão dos recursos públicos ou privados não deverão acontecer em hipóteses algum.

Sendo assim, é imprescindível que os atuais modelos de gestão e governança que compreendem os mecanismos de liderança e controle, devem monitorar e avaliar a atuação do gestor, garantindo assim, o interesse dos cidadãos. Essa garantia só é possível através da accountability, o que gera mais confiança, transparência e efetividade.

No caso específico da transparência, ela pode ser vista como um valor fim, que quando observada conscientemente, ajuda a combater a corrupção e a melhorar a governança. Esta por sua vez, requer a necessidade de estabelecer cadeias de accountability, observando assim, a gestão participativa, o acesso à informação, o respeito pelos direitos e garantias e a sustentabilidade ambiental.

Em suma, a transparência permite que os recursos sejam geridos ou investidos, partindo de uma visão compartilhada e aberta ao controle interno ou externo. O interno é aquele que um poder exerce sobre seus próprios agentes enquanto que o externo é exercido por um poder sobre o outro. Em ambos controles, o feedback é muito importante, pois, este contribuirá para melhorar a gestão.

Nos modelos de gestão participativa, a accountability, configura-se como um direito e uma obrigação que os cidadãos têm, uma vez confiado seus recursos a um gestor, de garantir a responsabilidade de exigir-lhes explicações pelo poder que lhes foi conferido, de informar sobre os riscos e assumir as consequências de seus atos e omissões.

A compreensão da responsabilidade e suas consequências exclui qualquer possibilidade de erro intencional ou deliberado, seja qual for o motivo, já que com o conhecimento adquirido e a análise dos potenciais riscos nenhum erro deve ser aceitável, pois, não há espaço para buscar validação e massagem do ego.

Como mecanismo de responsabilização, a accountability tornou-se um conceito central em relação às questões de governança pública e privada, responsabilidade pessoal, organizacional e política. Ela permite diferenciar entre o público e o privado e proporcionar formas de gestão aberta à participação da sociedade na construção das políticas públicas.

Na esfera pública, a responsabilização pode ser dividida em dois tipos: responsabilização vertical e horizontal. No primeiro caso, é realizada em níveis hierárquicos diferentes de gestão e no segundo, por poderes do mesmo nível o que permite uma maior participação social.    

Accountability é um conceito que deriva da língua inglesa, mas atualmente faz parte do nosso vocabulário. No entanto, na língua portuguesa não existe tradução literal, ou seja, não há uma expressão equivalente. Sendo assim, o conceito ainda carece de purificação semântica, uma vez que pode ser usada em diferentes contextos e abordagens.

Mesmo entre especialistas não existe consenso quanto a uma definição única e objetiva, pois, seu significado permanece subexplorado, ou seja, explorado de forma insuficiente. Ainda que alguns autores tenham efetuado algumas aproximações conceituais, não existe perfeita concordância nas traduções, mesmo que estas sejam próximas ou convergentes.

Mesmo que não haja uma tradução exata na língua portuguesa, ela pode ser definida objetivamente como responsabilização, tanto na esfera pública, assim, como na privada. Por isso, vários autores concordam que accountability remete, precisamente, à obrigação e à participação social, ou seja, a ‘obrigação de responder por algo’ que, na linguagem coloquial, significa prestar conta a alguém, o que nos remete a uma conclusão importante: ‘quem falha no cumprimento dos seus deveres e obrigações deve ser responsabilizado’.

Então, quem tem responsabilidade, também deve estar sujeito à responsabilização pelo seu desempenho. Neste sentido, a accountability faz com que haja responsabilidade pessoal, organizacional e política por um determinado desempenho, podendo ser bom ou mau. Por isso, ela pode ser interpretada como sendo um conceito da esfera ética, ou como diria o filósofo alemão Hegel, da esfera da eticidade ou da vida ética, entendida como o estudo sobre as ações humanas consideradas corretas no que tange a gestão dos recursos públicos ou privados.  

O significado do conceito, como reiteram a maioria dos autores, envolve responsabilidades acrescidas e intransmissíveis. Como referimos anteriormente, ela remete ao controle, à obrigação de prestação de contas que deve ser entendida como o dever de justificar as ações que foram ou não executadas pelo gestor, relatando todas as atividades que são da sua responsabilidade. Logo, garantir a accountability é uma prática que está diretamente relacionada à promoção da transparência, existindo, em certos casos, uma sobreposição entre ambas.

Os professores de ciência política Andreas Schedler e Richard Mulgan, por exemplo, interpretam o conceito de forma diferente. O primeiro entende a accountability como tendo um significado evasivo e confuso, enquanto que o segundo, como sendo um conceito complexo e camaleônico, ou seja, polissêmico e que muda com facilidade. Porém, Connors, Smith e Hickman, autores da obra O princípio de OZ: como usar accountability para atingir resultados excepcionais concordam que accountability gera senso (individual ou coletivo) de responsabilidade por resultados. 

Independentemente das divergências entre os especialistas, existe certo consenso que o termo accountability traz implicitamente a noção de responsabilização pelos atos praticados, sendo que há uma exigência explícita que, efetivamente, exige a prestação de contas no âmbito público   ou privado. Esta prestação, diz respeito à “obrigação que têm as pessoas ou entidades às quais se tenham confiado recursos, incluídas as empresas e corporações públicas, de assumir as responsabilidades de ordem fiscal, gerencial e programática que lhes foram conferidas, e de informar a quem lhes delegou essas responsabilidades”.

Por isso, é um conceito que vem sendo utilizado em diferentes níveis e circunstâncias de gestão e governança, denotando assim, a assunção de responsabilidade, imputabilidade, obrigação e prestação de contas que pode ser vista como a demonstração do que foi feito ou não com os recursos.

Nas democracias bem consolidadas, a accountability tornou-se um pressuposto que tem como premissa básica, a obrigatoriedade de todo e qualquer gestor, instituição ou poder, independentemente do nível hierárquico, de ser controlado. Por isso, ela está baseada na necessidade da responsabilização objetiva (conduta) e subjetiva (provar conduta). Em ambos os casos, a responsabilidade proveniente da prática de atos ilícitos ou a violação do direito de terceiros deve ser reparado.  

Garantir a accountability, necessariamente implica: prestar contas, estabelecer canal para receber manifestações, designar instâncias responsáveis para apurar desvios éticos dos gestores, servidores ou colaboradores, padronizar procedimentos, capacitar equipes simplificar apuração de faltas de menor potencial ofensivo e ajustar os mecanismos que reduzam fraudes e corrupção.

Para que haja, efetivamente, accountability é essencial que os cidadãos sejam conscientes e vigilantes dos seus direitos, deveres e responsabilidades. Em suma, nada é mais democrático do que o direito que cada cidadão tem de exercer seu poder de controle, sendo que, para isso, estará contribuindo para fortalecer os mecanismo de governança e integridade na gestão dos recursos públicos ou privados, fortalecendo assim a democracia participativa. 



[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020; Blaise Pascal: o caniço pensante. - 1ª ed. - Rio de Janeiro, 2021 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Integridade e compliance: realidade ou ficção na administração pública e privada?

 

 

“A verdadeira integridade é fazer a coisa certa, sabendo que ninguém vai saber se você fez isso ou não” 


[Oprah Winfrey].

  

Arlindo Nascimento Rocha[1]

Para início de conversa, não existe sequer a possibilidade de pensarmos que ‘integridade’ e ‘compliance’ possam ser ou vir a ser mera ficção ou futurismo da parte dos gestores públicos e privados. Óbvio que ainda temos um logo caminho a percorrer, porém, é verossímil afirmar com absoluta certeza, que já é uma realidade cada vez mais presente na administração pública e privada, muito em função dos ganhos em termos de cumprimento de normas, transparência, controle e prevenção.

No entanto, ainda é visível que algumas inciativas estão na fase embrionária de implementação de novos processos. Então, é preciso enfatizar que as empresas públicas e privadas só terão sucesso se os processos implementados tiverem consistência e continuidade. A luta pela integridade e pelo compliance deve ser contínua e não episódica, tendo em conta que, lutar pelo que é correto e justo é uma imperiosa necessidade julgando pelo que estamos vivendo na atualidade.     

A popularização desses conceitos no Brasil, emergiu a partir de situações adversas vividas na administração pública e privada que, por anos vinham reproduzindo uma cultura e uma ausência de honestidade, probidade e conformidade que levou  o país a ser manchete em grandes veículos de comunicação nacional e internacional pelos escândalos de corrupção que solaparam a base moral e ética não só das instituições privadas, mas também das públicas, corrompendo a mente de muitos profissionais que procuravam na função pública e privada uma forma de enriquecimento rápido e a qualquer custo.

Ainda é comum utilizar os dois conceitos (compliance e integridade) como se fossem sinônimos. Na realidade, um complementa o outro e não se auto excluem. É natural que, a primeira coisa que se faz quando se utiliza conceitos correlatos, é procurar definições mais ou menos consensuais, isto porque é pacífico entre especialistas, que as definições desde que devidamente contextualizadas são imprescindíveis em todos os domínios de conhecimento.

Neste caso, a exegese textual já indica que recusar qualquer definição ou tentativa de correlacionar conceitos é recusar inteligibilidade, é dificultar o diálogo, a compreensão e a comunicação. Nesse caso específico, é notório que ambos termos carecem de purificação semântica por causa do uso de uma linguagem, por vezes, inadequada ou simplória. Por isso, é proveitoso seguirmos tentando estabelecer nexos linguísticos entre compliance e integridade como forma de clarificá-los quanto a gênese e importância tanto na função pública, bem como nas iniciativas privadas.

Em sua origem compliance vem do inglês to comply (cumprir), ou seja, estar em conformidade com normas, leis e regulamentos, elementos essenciais à boa governança e uma prioridade estratégica para a maioria das instituições que tentam a todo custo evitar sanções. Por isso, desde 2013, com a publicação da Lei anticorrupção no12.846 e regulamentado em 2015 pelo Decreto 8.420, que dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, o termo compliance passou a fazer parte do jargão utilizado na administração pública e privada, e de certa forma, começou a fazer parte do vocabulário dos brasileiros em geral.

Já integridade, do latim integritate pode ser considerado uma virtude que se traduz numa conduta reta, honrosa, ética, educada e briosa. Em seu sentido lato, refere-se às características de algo inteiro, intocado, não maculado ou danificado. Nesse sentido, é um conceito muito mais abrangente, pois, não se limita apenas em estar em conformidade ou seguir normas e leis. Diferentemente de compliance, integridade como veremos, não significa o simples estar em conformidade.

Como conceito filosófico pode ser considerado, segundo Luiz Fernando Lucas, autor da obra A era da integridade: Homo Conscious A próxima evolução, como sendo “a soma de todos os valores absolutos, de todas as virtudes. É a ausência de falhas de caráter, de medo, de pensamentos e emoções negativas. Integridade é perfeição, inteireza, unicidade e completude”, ou seja, é inquestionavelmente uma qualidade suprema, pois, sem ela nenhum sucesso real é possível, uma vez que permeia toda a práxis humana seja no âmbito pessoal ou profissional.

A integridade como valor universal já faz parte do nosso dia a dia, por isso, é comum falar de ‘cultura de integridade’, mas, no atual patamar em que nos encontramos, é oportuno ainda falar em ‘desafio cultural’, pois, romper paradigmas leva tempo. Esse desafio deve fazer com que cada pessoa acredite e aja de acordo com os princípios elencados por Lucas, sendo ela, a bússola moral enraizada no ‘Ser’ do homo conscious (cidadão consciente), não apenas exibido na forma como age ou não quando está sendo observado pelos outros.

Por isso, integridade tornou-se a pedra angular não só nas relações interpessoais, mas também na atual cultura corporativa, pois, ultrapassa as fronteiras da mera conformidade, podendo ser considerado um sistema que engloba valores compartilhados que incluem ética, respeito, responsabilidade, justiça, prevenção, transparência e controle. Desta forma, passou a ser vista como uma forma de anuência a um conjunto de valores plenamente justificáveis, onde o critério de justificação é a realidade objetiva, materializada através das relações humanas e laborais que requerem muito mais do que a adesão arbitrária a um conjunto de valores individuais, mas, a adesão a uma categoria de valores aceites e partilhado por todos. 

Logo, pode-se inferir com razoável segurança que a sociedade encontrou na integridade, o liame entre o ‘pensamento correto’ e a ‘ação correta’, um acordo intrinsicamente ético entre ‘ser correto’ e ‘fazer a coisa certa’, com base em regras (imperativos categóricos), visto que, agir com base nesses princípios, é o certo a se fazer, como diria Immanuel Kant. Portanto, fazer a coisa certa mesmo quando ninguém está vendo ou vai ficar sabendo, é a essência da integridade, assinala Winfrey, ou seja, é a fórmula absolutamente necessária para curar as mazelas de uma sociedade fustigada pela corrupção, mãe de todas as assimetrias sociais assinaladas por Lucas, que infelizmente, ainda assolam nosso país.

No entanto, nem tudo está perdido, aliás é o próprio autor citado que nos alerta que essas assimetrias podem ser minimizadas pelo ‘consciente íntegro’, uma virtude em progresso, pois, o futuro de cada cidadão, segundo ele, está intimamente ligado ao autoconhecimento e a consciência da sua responsabilidade ética, consciente do que deve e do que não deve fazer ou permitir na vida pessoal e no desempenho das suas funções profissionais. Por isso, é um imperativo seguirmos lutando para que haja mais integridade, pois, nisso reside a essência do combate à corrupção.

Nesse sentido, todos os gestores da administração pública e privada que almejam estar em conformidade com as leis/normas, que observam estritamente os princípios e os valores norteadores da integridade e do compliance, maximizam suas possibilidades de serem considerados instituições íntegros, sãos, imaculados e sem desvios, conforme as diretrizes que devem embasar a atuação de gestores e servidores de forma ética, transparente e comprometida.

Niterói 01/06/2021



[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.

Ética e deontologia profissional na Função Pública


"Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal[...]"

 [Immanuel Kant].  

Arlindo Nascimento Rocha[1]

 

Atualmente, quando se fala em ‘função pública’, logo pensamos (genericamente) em um conjunto de atribuições que podem e devem ser desempenhadas por ‘agentes públicos’, podendo ser em funções temporárias ou em cargos de confiança. A isso vem associado um conjunto de julgamentos que muitas vezes não abonam em favor da nobre missão que é de servir com responsabilidade, transparência e integridade nas diversas esferas da governança.  

O termo ‘agente’ (do latim agens) refere-se ao sujeito da ação, isto é, àquele que exerce uma determinada ação. Na lei brasileira o ‘agente público’ segundo a Lei no 8.429/02/01/1992 em seu Art. 2° “é todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função (…)”. No entanto, é preciso frisar que existem outros tipos de vínculos: servidor público, empregado público, terceirizados (...). Sendo assim, a categoria ‘agente público’ contempla todos os servidores, ou seja, todos que exercem funções a nível federal, estadual e municipal.

A Lei que regulamenta esse tipo de contratação é a 8.754/1993 que dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender ao interesse público, como está previsto na Constituição Federal, em seu Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência.” No Inciso IX reafirma-se que: “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público.”

No desempenho das suas atribuições, os agentes públicos, principalmente os que ocupam funções administrativas ou de chefia, deparam-se com situações em que é preciso tomar determinadas decisões. Mas, nem sempre são pautadas nas melhores práticas. Boas decisões exigem discernimento, integridade, honestidade, mas, sobretudo, o exercício das virtudes éticas. Esse exercício requer que todo o agente público, aja com decência, ou seja, virtuosamente, pois, são eles que estão na linha de frente, lidando com recursos públicos. Diante das inúmeras demandas, são eles a tomar as melhores decisões com a finalidade de garantir o bem comum, baseado em padrões e princípios éticos de probidade, decoro e boa-fé, sendo que, este último princípio tem a função de estabelecer o padrão ético e de conduta dos agentes públicos.

Mas, o que significa ser virtuoso ou agir virtuosamente? Na ética aristotélica, a virtude desempenha um papel central na busca do télos (finalidade), através da prática de boas ações que visam o bem de todos. Logo, ser virtuoso significa agir em prol do bem comum, ou seja, em prol da comunidade. Na esteira de Aristóteles, pode-se elencar três características para que um agente público possa ser considerado virtuoso: deve ter consciência da justiça; agir motivado pela própria ação; e, agir com absoluta certeza da justeza do seu ato. Portanto, quanto mais exercitar suas virtudes, mais virtuoso será.  

Nesse caso, o estagirita considerava a virtude como o ‘meio-termo’ entre dois perigosos extremos, ou seja, uma espécie de mediedade, na medida em que visa um meio entre o excesso e a falta. A semelhança do que afirmou em sua obra Ética a nicômaco, o agente público deve ser visto como alguém que tenha boa reputação, pois, deve praticar a virtude acima de tudo. Logo, precisa ser um bom exemplo de cidadania, integridade e honestidade. Como a mulher de Cesar, não basta o agente ser honesto, deve parecer honesto, pois, só se torna virtuoso e ético convivendo e relacionando com os outros.  

Por isso, não basta apenas praticar atos virtuosos, é preciso que se tenha uma conduta virtuosa, sabendo e querendo fazê-la. Virtuosidade não deve ser confundida com um simples ato voluntário ou uma opinião. Por isso, é necessário organizar um novo referencial de orientação do comportamento do agente público, em que prevaleça “(...) o bem de todos, sem preconceitos (...)”, como está explícito na Constituição Federal em seu Art. 3º, Inciso IV.

Mas, o grande desafio na função pública é ter esse equilíbrio para encontrar efetivamente esse ‘meio-termo’, ou seja, esse ‘caminho-do-meio’ baseado no esforço contínuo para exercer uma função com sabedoria, integridade e honestidade, valores que são cruciais à sociedade. Mesmo assim, não se deve esquecer que esse caminho também pode ser o da mediocridade. Nesse sentido, a fronteira entre ser íntegro ou não, está na capacidade de lidar com os quereres dos outros e encontrar a justa proporção entre uma decisão rígida, porém, justa ou uma decisão benévola, mas sem efeito prático na transformação do comportamento ético do agente.      

Diante da complexificação das relações laborais no contexto do funcionalismo público brasileiro em geral, é observável, em certos casos, atitudes e comportamentos que muitas vezes espelham desvios de conduta, fraudes e corrupção no que tange a inobservância dos limites legais que cada agente deve exercer suas funções. No entanto, nos últimos anos o Brasil vem seguindo a tendência mundial, relativamente aos debates em torno de questões éticas que envolvem a administração pública. Aliás, como vimos anteriormente, o Art. 37 da Constituição Federal, enfatiza claramente os princípios fundamentais que visam garantir os aspectos éticos e de transparência.

É nesse sentido que a ética e a deontologia profissional tornaram-se fundamentais, pois, hodiernamente são duas áreas de conhecimento que evidenciam a possibilidade de recuperar determinados valores profissionais que ao longo do tempo foram colocados de parte, em consequência da crise que assola a sociedade como um todo.

Etimologicamente, ética (do grego ethos, ‘costume’, ‘hábito’ ou ‘caráter’) como conhecemos hoje, está associada diretamente a ideia de virtude.  Essa ideia, como vimos, foi defendia inicialmente por Aristóteles, o primeiro a tratar a ética como campo de conhecimento associado ao modo de regulação do comportamento dos indivíduos. Além dele, outras figuras importantes como Maquiavel, Espinoza, Jeremy Bentham, Stuart Mill, Kant e Nietzsche também refletiram sobre o tema em suas respetivas épocas.

Apesar disso, ética em seu sentido lato, continua sendo um conceito polissêmico, aliás, é um daqueles conceitos que todos conhecem e usam, mas não sabem explicar. Regra geral, é considerada uma ciência da conduta humana. No entanto, pode ser concebida de duas formas diferentes: a que considera como ciência do fim para qual a conduta humana deve ser orientada e os meios para atingir tal fim; e a que considera a ciência do móvel da conduta e procura determinar tal móvel com vista a disciplinar essa conduta. Mas, atualmente existe consenso entre os estudiosos que a ética é uma filosofia prática que procura regulamentar a conduta, tendo em vista o desenvolvimento humano, uma vez que procura aperfeiçoar seu caráter através de atos que se orientam pela retidão, isto é, a concordância entre a ação, a verdade e o bem comum.

Tornou-se também, um imperativo falar em ‘deontologia profissional’, sobretudo, como referência à noção de dever ético ou professional. O termo deriva do grego deontos/logos e significa o estudo dos deveres que surgiu a partir da necessidade da autorregulagem de condutas profissionais. O termo, segundo o filósofo Italiano Nicola Abbagnano, começou a ser usado em 1834 por meio da obra póstuma de Bentham Deontology or the science of morality. Inicialmente era usado para designar uma ciência do ‘conveniente’, ou seja, uma moral fundada na tendência a perseguir o prazer e fugir da dor [...].

A tarefa do deontólogo, diz Bentham, é ensinar ao homem como dirigir suas emoções de tal modo que as subordine ao seu bem-estar. Contrariamente à ideia de Bentham, na filosofia moral (séc. XX) passou-se a falar em ‘éticas deontológicas’ ou do ‘dever’. Um exemplo desse tipo de ética é a kantiana que prescreve o ‘dever’ pelo ‘dever’, uma crítica ao utilitarismo benthamiano, como adverte Michael Sandel, pois, fundamenta-se no respeito e na dignidade da pessoa humana.

De modo geral, a deontologia profissional é entendida como a forma de reger os comportamentos profissionais visando alcançar bons resultados, garantir a confiança e proteger a reputação do agente público. Reger os comportamentos, significa orientar a atuação do agente na execução de atos administrativos a bem do interesse público, sempre com base em valores regidos pela ética profissional.

Por isso, deve ter como sustentáculo os princípios ou normas exigíveis e exequíveis por todos os agentes, ainda que não estejam regulamentadas pelas leis vigentes. Em razão disso, os códigos deontológicos ampliam o sentimento ético. Em certos casos, ética e deontologia são inseparáveis e muitas vezes usadas como sinónimos. Mas, ética não se reduz à deontologia, pois, é preciso ir além do mero cumprimento das normas deontológicas.

Nesse sentido, e, voltando a Aristóteles, o bom agente público deve desenvolver todas as virtudes profissionais e humanas, exercitadas através da profissão. Logo, todos devem exercer seus deveres com zelo, dignidade, decoro e integridade tendo consciência que os princípios éticos são primados maiores que norteiam o serviço público, seja no exercício do cargo ou fora dele. A semelhança do que disse Kant, todos devem agir como se a máxima da ação de cada um pudesse ser  transformada em uma lei universal como forma de escapar dos aspectos subjetivos do utilitarismo e compreender que o valor ético das ações está ligado à motivação do agente e não às consequências do ato. 

Para finalizar, reafirma-se que ética e deontologia profissional dizem respeito a todos que trabalham nos diversos níveis da função pública, independentemente da posição hierárquica que ocupam. É importante que todos atuem em consonância com os princípios normativos estabelecidos e que haja controle sobre seus atos. Por isso, torna-se um imperativo a criação de uma política de gestão ética por meio de ações que promovam continuamente a integridade na função pública.

Sejamos todos éticos e íntegros no trabalho, na vida, até a eternidade!

24/05/2021

 

 

Referências:

ABAGNANNO, Nicola. Dicionário de filosofia. – 5ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. [PDF]. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross: Nova cultural, 1991.
BRASIL. Constituição Federal. - 6ª ed. Até a EC n. 57. – Barueri, SP: Manole, 2009. – (Códigos 2009).
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2/07/1992. (Capítulo I, Artigo 2). Disponível em<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm#:~:text=L8429&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20san%C3%A7%C3%B5es%20aplic%C3%A1veis,fundacional%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art>. Acesso em 24/04/2021.
CARAPETO, Carlos; FONSECA, Fátima. Ética e Deontologia - Manual de Formação. [PDF] - (ISBN 978-972-99919-1 -2), Lisboa, 2012.
SANDELM, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. – 21ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.


[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.

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