“Até mesmo uma decisão correta é errada se tomada muito tarde”
[Lee Iacocca].
Por: Arlindo Nascimento Rocha[1]
A humanidade, segundo
o sociólogo alemão Erich Fromm, começou com a assunção de um risco
(desobediência) que representa, ao mesmo tempo, o princípio da liberdade e o
desenvolvimento do raciocínio, ou seja, foi o primeiro ato de transgressão que,
literalmente, abriu os olhos dos nossos pais celestiais para o bem e para o mal. Com isso, passaram
a seguir suas próprias inclinações e a conviver com todos os
perigos que, a partir da separação ontológica tiveram que superar diariamente.
A evolução do
homem, desde então, esteve sempre atrelada ao conhecimento dos mecanismos da
natureza e a previsão dos perigos. Seu primeiro lar era um lugar seguro,
tranquilo e tudo existia em perfeita harmonia. Com a perda do seu referencial
ontológico, seu único objetivo passou a ser a garantia da própria sobrevivência.
Desta forma, precisou reinventar-se em um mundo absolutamente caótico,
enfrentando situações cada vez mais complexas que o obrigou a aprimorar suas
habilidades físicas e mentais, sofisticando-as continuamente.
Com a
complexificação da sociedade, percebeu que viver em ‘comunidade’ implicava
estabelecer laços cada vez mais sólidos que permitiam, não só, obter mais
segurança, mas também, partilhar informações sobre os animais que caçavam, das
plantas que coletavam, dos riscos e infortúnios ligados à vida cotidiana. A
evolução favoreceu àqueles que foram capazes de superar os riscos e estabelecer
laços fortes e duradouros que subsidiaram a continuidade da espécie humana, e,
pelo acúmulo de conhecimento foram capazes de prever certos riscos, executar
estratégias e propor soluções eficazes.
Por isso, os homens
ascenderam tão rapidamente ao topo que os ecossistemas não tiveram tempo de se
ajustar às demandas cada vez maiores. Estas aumentaram incontrolavelmente que novas
transgressões não demoraram para acontecer. O fruto disso foi o esgotamento de alguns
recursos que levaram a dispersão inicial dos homens. Logo, é verossímil afirmar
que a transgressão não é algo novo, pois existe desde os primórdios. O primeiro
ato transgressivo é antigo e do conhecimento de grande parte dos homens, já os
subsequentes, apenas seu conhecimento é novo para alguns homens, mas, todos, já
perceberam o quão é importante minimizá-los.
Se os primeiros homens,
ainda que, intuitivamente souberam até certo ponto, lidar e evitar certos riscos
para a manutenção da sua sobrevivência, atualmente continuamos seguindo a mesma
estratégia. E mais, continuamos lidando com velhos e novos riscos. Os velhos provêm
de desenvolvimentos dramaticamente negativos que deveriam ser previstos, e até
evitados, mas, tal não aconteceu e os novos, do nosso egoísmo e
irresponsabilidade ambiental, social, cultural e econômica.
A única diferença
é que, atualmente, podemos afirmar com absoluta segurança, que é possível fazer
uma gestão de riscos de forma cada vez mais eficaz, permitindo prever, controlar
e mitigar determinados riscos que, infelizmente ou felizmente estamos
submetidos, pois, até o simples ato de respirar, nos últimos anos tornou-se um
dos maiores riscos. Logo, afirmar que não existirá futuro destituído de riscos
é trivial e não constitui nenhuma novidade. Em termos políticos e éticos um dos
maiores riscos da sociedade contemporânea, certamente, é o de não querer correr
riscos, aliás, não correr riscos é uma estratégia que apenas conduz ao
fracasso, como diria Zuckerberg.
Quando se fala de
administração pública, a gestão de riscos, segundo Rodrigo Fontenelle é o
elemento chave, a pedra angular das organizações públicas, pois, permite lidar
de modo eficaz com as incertezas. No entanto, sua efetiva implementação não é
fácil, uma vez que, ao longo dos tempos construiu-se vários mitos em torno desses
sistemas que precisam ser desconstruídos. Alguns são parcialmente verdadeiros,
mas não representam a realidade das atuais instituições públicas.
De acerta forma é
até compreensível, uma vez que, em sua gênese, os mitos ajudaram os primeiros
homens a dar sentido às incertezas que os rodeavam. Então, como categoria
fundante da humanidade é inquestionável sua presença na vida dos homens, pois,
sua função primordial era revelar modelos exemplares de todas as atividades
humanas. Mas, na administração pública atual, a gestão de riscos não pode
guiar-se pelas inconsistências dos mitos, muitas vezes tidos como supostas verdades.
Existem dezenas
deles, mas, nosso objetivo não é fazer uma lista interminável. Queremos sim,
provocar no leitor a tomada de consciência que, muitas vezes nossa ‘ignorância’
sobre determinadas matérias nos faz aceitar as soluções mais fáceis e,
aparentemente, menos complicadas. Diante disso, os gestores precisam escolher, objetivamente,
que estratégia seguir, pois, quando não se tem uma rigorosamente definida, qualquer
solução serve.
Não que a gestão
de riscos seja uma tarefa, absolutamente fácil, ou a bala de prata para todos
os problemas da administração pública, mas é importante que haja minimamente a
compreensão dos objetivos que inspiram sua implementação, pois, é um requisito cada
vez mais necessário. Segundo especialistas, ela permite que se contabilize o
potencial impacto de todos os tipos de riscos em todos os processos,
atividades, produtos e serviços prestados.
Para
nos ajudar a compreender e desconstruir os mitos mais comuns na implementação
de sistemas de gestão de riscos na administração pública, Fontenelle sumariza
na obra Implementando a gestão de riscos
no setor público, uma lista de cinco mitos que
passaremos a explicitar:
O
primeiro mito, está relacionado com a equivocada noção de que implementar um
sistema de gestão de riscos, implica no aumento de trabalho. Mas, sua
implementação, segundo Fontenelle, não pode ser vista como mais uma tarefa. Na verdade,
está atrelada a uma mudança de cultura organizacional, mas, isso não acontece
como se fosse um passe e mágica;
Da
mesma forma, o segundo está relacionado com o suposto aumento dos custos da
instituição. Na verdade, é o contrário, pois, um sistema eficaz de gestão de
riscos é uma aliada na redução de custos, através da otimização dos processos e
priorização das demandas. Sendo assim, é preciso definir claramente a
metodologia, as responsabilidades e responsabilizações para gerenciar os riscos
tendo em conta os objetivos e a política da instituição;
O
terceiro mito não foge à regra, pois, a visão distorcida de que a gestão de
riscos pode engessar os processos institucionais através do aumento de controles,
é segundo Fontenelle, uma falácia, pois, um bom gerenciamento de riscos fará
com que os gestores conheçam seus processos e, consequentemente, o nível de
risco envolvido nas atividades da instituição;
O
quarto mito, é o fato comum de pensar que apenas através de consultorias externas
é possível implementar um bom sistema de gestão de riscos no setor público o
que pode, efetivamente, aumentar os custos. Diante disso, Fontenelle assegura que,
mais importante do que contratar consultorias é investir na capacitação dos
servidores. Estes, poderão atuar como multiplicadores gerando bons resultados a
partir de um custo baixo;
Finalmente,
o quinto mito prende-se na visão enganosa que, para se implementar a gestão de
riscos, o gestor precisa necessariamente de um sistema informatizado. Em
verdade, muitas instituições, que já possuem sistemas de gestão de riscos
avançados, começaram utilizando simples planilhas. Diante disso, Fontenelle
assegura que, a falta de recursos para implementar um sistema informatizado não
pode ser usado como desculpa para a não implementação de gestão de riscos.
Os mitos ligados
aos sistemas de gestão de riscos são tão numerosos que não se esgotam
delimitando-os, apenas aos cinco identificados na obra de Fontenelle. Desta
forma, é possível ainda, baseado nos estudos de David Hillson, líder
internacional em gestão de risco, enumerar outros tão importantes quanto
os citados, nomeadamente:
- Todos os riscos são ruins;
- A gestão de riscos é um desperdício de tempo;
- O que não conhecemos não nos prejudica;
- O gestor é o único responsável pelo gerenciamento de riscos;
- Todos os riscos podem e devem ser evitados;
- O nosso negócio não é arriscado;
- Gestão de riscos requer números;
- Os riscos são cobertos por processos existentes;
- Contingência é para pessoas fracas;
- A gestão de riscos não funciona.
Contra os mitos,
apenas a verdade dos fatos é o caminho. Caminho esse que só é possível
percorrer através do conhecimento da verdade, literalmente expresso no
versículo de João, segundo o qual “conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”. No caso concreto dos gestores públicos, conhecer os mitos é importante,
porém, conhecer a verdade sobre eles é fundamental para que se possa
desconstruí-los em função da boa gestão. Inevitavelmente, chegar-se-á à
conclusão de que, o gestor que conhece os riscos a que está exposto, estrará em
condições de aceitá-los, transferi-los ou mitiga-los sumariamente.
Então, seguindo o citado
versículo, Hillson aponta um conjunto de verdades associados aos mitos anteriormente
mencionados que, certamente, ajudarão os gestores públicos a se libertarem de algumas
certezas erroneamente cristalizadas e que em nada ajudam a administração
pública. Em síntese, assegura que:
- Os riscos incluem ameaças e oportunidades e ambos precisam ser gerenciados de forma proativa;
- Se lidarmos com o risco de forma eficaz não haverá muitos problemas;
- Os riscos podem prejudicar nosso negócio e a nós também;
- Cada membro da equipe deve ser um gestor de risco administrando os que afetam sua área;
- Nem todas as ameaças podem ser evitadas, pois, as vezes evitá-las pode trazer custos elevados;
- O risco é inerente em todos os negócios e projetos;
- Muitos riscos não podem ser quantificados, logo, a abordagem qualitativa é necessária;
- A gestão de riscos deve identificar novos riscos, avaliar sua importância e desenvolver respostas específicas;
- Incluir um orçamento para riscos conhecidos e contingentes é sinal de sabedoria e não de fraqueza;
- A gestão de riscos quando feita corretamente, sempre funciona.
Portanto, esforços
contínuos em diversos níveis são necessários para permitir que os gestores de
instituições públicas tenham como conhecimento o processo de: avaliação,
gerenciamento e busca de feedback sobre os riscos mitigados ou não, uma
vez que, ela é parte integrante de todas as atividades de governança e deve ser
institucionalizada através de metodologias híbridas de fácil compreensão,
implementação, monitoramento e avaliação.
A verdade
espelhada em tudo o que acabamos de abordar é que, enfrentar e desconstruir os
mitos sobre a gestão de riscos e implementar soluções exequíveis permitirá aos
gestores públicos garantir que, sua gestão seja baseada na realidade, garantindo-lhes
maiores chances de sucesso.
Enfim, os gestores
devem perceber que até mesmo uma decisão correta é errada se tomada muito
tarde, como citamos na epígrafe do artigo. Portanto, implementar a gestão de
riscos na administração pública é uma decisão correta, mas, precisar ser tomada
no momento certo.
Niterói, 17/11/2021.
[1] Atua como Consultor do Núcleo de Integridade e compliance da Controladoria Geral do Município (CGM-Niterói). É autor das obras: Entretextos: coletânea de textos acadêmicos. - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora PoD, 2017; Paradoxos da condição humana: grandeza e miséria como paradoxo fundamental em Blaise Pascal. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2019; Religar-se: coletânea de breves ensaios. - 1ª ed. – Maringá: Viseu, 2020; Blaise Pascal: o caniço pensante. - 1ª ed. - Rio de Janeiro, 2021 e de vários artigos publicados em revistas acadêmicas.
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