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sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Autonomia, integridade e os limites do compliance

 



A filosofia moral de Immanuel Kant oferece uma lente poderosa e incisiva para analisarmos os conceitos que fundamentam nossa vida ética individual e coletiva. Através de sua rigorosa distinção entre autonomia e heteronomia, somos convidados a uma reflexão crítica sobre a natureza da moralidade e a examinar as ferramentas que utilizamos para promovê-la, como a integridade e o compliance.


Para Kant, a autonomia da vontade é a pedra angular da moralidade. Não se trata simplesmente de "fazer o que se quer", mas da suprema capacidade da razão prática de se autodeterminar, ditando a si mesma a lei moral – o Imperativo Categórico

O agente autônomo age por puro respeito à lei que sua própria razão universalizante concebe. É a liberdade no seu sentido mais profundo: a obediência a uma lei que eu mesmo prescrevi enquanto ser racional. Em oposição direta, a heteronomia ocorre quando a vontade é determinada por algo externo à razão legisladora: um desejo, uma consequência esperada (como uma recompensa ou punição), uma pressão social ou uma autoridade divina. 

Para Kant, qualquer ética baseada na heteronomia é falha, pois substitui o comando da razão pela inclinação ou pela coerção, esvaziando o ato de seu valor moral genuíno.

É neste ponto que a integridade adquire seu significado mais nobre. Na perspectiva kantiana, a integridade não é meramente honestidade ou coerência com valores pessoais arbitrários. É a virtude cardinal do agente autônomo. É a manifestação prática e constante de uma vontade alinhada com o dever. A pessoa íntegra é aquela cujas ações emanam de sua legislação moral interna; sua conduta é um reflexo fiel de sua racionalidade ética. A integridade, portanto, é a autonomia em ação.

O compliance, por outro lado, é a materialização institucional da heteronomia. Trata-se de um conjunto de regras, procedimentos, controles e mecanismos de monitoramento externos, projetados para garantir que os indivíduos ajam em conformidade com o dever. 

Um programa de compliance eficaz é aquele que previne fraudes, corrupção e outras ilegalidades através da ameaça de sanções e da vigilância. O problema, do ponto de vista kantiano, reside na motivação que ele engendra. O indivíduo que segue uma regra apenas porque o sistema de compliance a impõe e o pune por descumpri-la está agindo de forma heterônoma. Sua motivação não é o respeito à lei moral, mas o cálculo de consequências: medo de punição, desejo de recompensa ou aceitação social. Ele é cumpridor, mas não é autônomo e pode, em outra circunstância sem fiscalização, transgredir a mesma regra. Falta-lhe, portanto, a integridade kantiana.

A crítica não é que o compliance seja inútil. Em um mundo imperfeito, ele é não apenas necessário, mas vital. Ele funciona como um dique de contenção contra a maldade e a negligência, criando um piso mínimo de conduta aceitável e protegendo a sociedade. No entanto, a filosofia kantiana nos alerta para seu limite intrínseco:

⇨O compliance pode moldar o comportamento, mas é cego perante a intenção;
⇒Ele pode criar conformidade, mas não pode cultivar virtude.

Uma organização ou sociedade que se fia exclusivamente no compliance está, na visão kantiana, promovendo uma moralidade de segunda categoria, uma ética da heteronomia, onde os agentes são "marionetes" bem-comportadas, e não legisladores morais autônomos.

A verdadeira aspiração ética, portanto, deve ser a de usar a estrutura heterônoma do compliance não como um fim em si mesma, mas como um andaime, um espaço protegido onde a autonomia e a integridade possam ser exercitadas e cultivadas. O objetivo final é que as regras externas se tornem internalizadas pela razão prática, transformando-se em convicção moral.

A grande questão que Kant nos lega é: estamos satisfeitos em construir sistemas que apenas produzem agentes cumpridores e heterônomos, ou almejamos o desafio maior de educar e fomentar agentes autônomos, íntegros e verdadeiramente éticos, que agem por dever e não apenas sob a ameaça do compliance?

A resposta define não apenas a eficácia de nossos sistemas, mas a altura moral de nossa civilização.

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